domingo, 13 de março de 2011

Pour

Preciso beber mais.
Há algum tempo eu via esse tom prateado e anseiava, pedia, imporava, mas tinha de me conformar e voltar ao cinza sujo das pessoas e das ruas ao meu redor. Nada mais a contemplar.
Olho pela janela e pressinto meu desejo chegando. A alma presa em um sofá, abatida pelo cansaço do corpo e pelos mil flashes da mente, se cala. Os olhos, atentos e auto-ilusionistas com promessas de pequenas alegrias, se apagam com gosto.
Gota após gota, a tinta da pele e dos cabelos esvai-se, mistura feliz. Ignoro o barulho na sala; finjo que descarto as roupas; somos só nós duas, eu e ela.
Des-remonta todas as partes de mim; projeta no céu fios furta-cor de passado e futuro, prazeres mil de amostra grátis, congela a fala e refresca o além-dicionário do instinto.
Retorno com um "obrigada, volte sempre". Helpless.
Preciso sorver mais, voltar ao âmago da escultura, a ser dança, luz e satélite, à brisa gélida e ao cheiro de vida molhada. I'm in the mood for rain.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O elo (parte de um sonho)

Mais uma noite. "Caminhar em meio a floresta com a confiança de uma lua cheia é como tornar um lençol seu mar mais desconhecido", diz. Ri de sua imaginação para frases frívolas, mas adora quando elas se espalham, ainda mais quando é por todo o seu corpo. Prova um pouco do arrepio e deixa o suficiente pra depois. Diverte-se com a própria sombra de seus pés rápidos, enquanto pensa na torre. Para.

Um canto sibilante chegou aos seus ouvidos. "Eu não consigo me aproximar dos seus pensamentos...". Algo novo! Não era em sua língua natal, mas entendia perfeitamente. "Eu não... consigo... me aproximar...", repetia-se e repetia-se, se tornava mais nítido e choroso. Assobiou de volta, no mesmo ritmo, querendo ajudar, mas não sabendo como. De repente, um "TAP!" o fez estremecer. O barulho era forte demais.

Esticou a vista e viu um amontoado de pessoas em frente a um muro de pedra. Estavam com vestes brancas e encapuzadas, descalças, e pareciam ser todas mui jovens. Uma delas, de estatura tão pequena quanto a sua, estava encolhida em frente a uma mulher mais alta.

"Eu sei que é uma responsabilidade enorme; mas, de nós, sabemos que, desta vez, apenas você pode ser capaz de descobri-lo. É um esforço que precisa ser feito. Todos nós precisamos que o acorde... Desperte, por favor!"

A jovem à sua frente parecia chorar. De onde estava, não via lágrimas; porém, estavam lá. Os outros se dispersavam aqui e ali; uns cantavam, outros procuravam por algo, outros apenas esperavam. Ela afastou-se dos demais, e balbuciava o canto novamente.

Ele sabia que não era em vão aquele desejo. Queria ajudar àquela menina, mas como podia ser útil? Ficara paralisado com apenas o tom de sua voz, sentia-se queimar. Estranhamente, o chão de pedra não parecia mais tão frio quanto antes... mas ainda era frio.

"Eu não consigo..." Chegara um pouco mais perto. A iluminação estava melhor - podia ver sua face. Não havia nada de espetacular: olhos amendoados, pele morena, cabelos escuros levemente desgrenhados apesar de presos, feições simples como as que costumava esculpir, isto sendo o máximo de familiar ou tecnicamente agradável que pudesse pensar... Fechou os olhos e pensou que não conseguiria sair dali. Nem queria.

A brisa soprou o local com força, fazendo algumas chamas das candeias e alguns mantos dançarem; aproveitou-se da distração para locomover-se de novo pra mais perto, subindo até o alto de uma pequena parede de pedra. Ali era confortável, e a tensão tornava tudo ainda melhor. Faltava algo. Assobiou outra vez e sorriu. A mulher bocejara, fazendo alguns dos jovens também bocejarem, e indagarem, e rirem, e se distraírem...

"EU NÃO CONSIGO ME APROXIMAR DOS SEUS PENSAMENTOS"...

"...eu não posso ficar quieto...", ouviu-se. Ele, decidido, e já mui perto daquela menina, sibilou-lhe: "Você pode guardar um segredo?"

Uma luz fraca, porém incomum, iluminou um cogumelo próximo de onde a jovem estava. Ele cresceu, e quanto mais aumentava, a intensidade da luz se tornava mais forte, e fluorescente. Flocos cintilantes como vagalumes caíam do céu. Os demais cantavam, comemorando. Somente ela correu... até ele.

"Eu estava te mandando sinais daqui", disse. "E você ainda não os decifrou", respondeu-lhe. "Vamos?". Fez que sim com a cabeça. Era a hora de recomeçar...

Maestros da morte

Fim de tarde. O bar da esquina estava como sempre - cheio, animado e com o velho aroma de confusão iminente. Desta vez, um grupo relativamente grande fazia alarde e música. Comemoravam a penúltima apresentação da orquestra naquele ano - ao que parece, um sucesso de público. Estavam todos altos; mas posso dizer com certeza que, exceto pela moça no terceiro banco da direita da mesa, que parecia a ponto de vomitar, um rapaz de cabelo comprido sentado à minha esquerda, e Letícia, que andava por todo o local pra cumprimentar alguém de vez em quando, eram os mais bêbados de todos. Não no sentido alcoólico, todavia - nenhum dos dois havia bebido algo do tipo, até onde me lembro. Era uma euforia compartilhada entre ambos, porém contida, disfarçada sutilmente pela situação. Porém, eu havia notado.


Letícia era o único motivo por eu estar ali naquele dia. Ela estava realmente feliz, e queria compartilhar um pouco comigo, ao me tirar do meu tédio atual, ou ao menos tentar – sem sucesso. Estar ao redor de pessoas que não conheço me deixa desconfortável, ainda mais porque isso ocorre comigo todos os dias. Preferi sair na surdina, como de costume, e ficar do lado de fora, esperando alguém me "salvar", ou ter forças para retornar para casa. Ela não me seguira.


Aquilo me deixara impaciente. Resolvi ir para casa quando uma música tocada, no violino, me fez voltar a cabeça para trás. Estava desafinada, cheia de interrupções ... e era a MINHA música.


Atravessei o bar e meus sentidos sumiam junto com cada nota... até o som desaparecer. Estavam todos … mortos?




O som do violino me fez falta naquele momento. Pelo menos eu teria como me distrair daquela visão horrenda. Pelo menos eu teria onde me agarrar – aquela música me definia, mesmo sendo tocada sem letra alguma, naquela versão mais pura, embora desafinada, que foi sumindo até eu me deparar com essa … cena inexplicável.

Um homem musculoso com o torso rachado em dois. Uma menina enforcada com o próprio capuz negro. A moça da terceira fila, afogada em seu próprio vômito. Um senhor com os olhos arrancados, os nervos óticos se retorcendo devagar. O rapaz que estava sentado ao meu lado, escapelado até a morte, com o cérebro exposto. E Letícia.


Letícia me olhava com olhos tristonhos, úmidos. Ajoelhada no chão, próxima a um dos cadáveres.
Corri até ela e quase gritei, “Mas o que foi isso? Isso não pode estar acontecendo!” sem nenhuma reação ou resposta. Aquilo me assustou mais ainda, e a larguei, recuando três passos. Ela só acompanhou meu movimento com aqueles olhos lacrimejantes.


Os olhos mal piscavam. Amendoados. Indiferentes, mas sofridos.


Perturbado, eu pisquei várias vezes. Os olhos praticamente me sugavam. Senti uma vertigem tremenda, meus pés falharam, as pernas trêmulas me derrubaram no chão. Pouco a pouco, eu deixei de existir. Tudo foi ficando sem sentido e falhas na minha visão começaram a se impor sobre o ambiente que eu presenciava. Uma estática absurda, fantasmas como os de uma transmissão ruim, rabiscos que iam se abrindo e rasgando a própria realidade à minha frente … fui deixando de existir.


Nos últimos momentos, os acordes da música, uma sensação de identificação total, de ser engolido.
Uma dor lancinante me feriu a testa, eu percebi que havia batido a cabeça contra a mesa do bar, tirei apressada os fones de ouvido que tocavam aquela música estranha. Atordoada, balancei a cabeça e procurei o meu amigo Pedro, onde é que ele havia se metido? Levantei preocupada, havia dormido no bar, mas porque ele havia deixado eu, sua melhor amiga, Letícia do coração, ali com dois retardatários que discutiam sem prestar atenção a mim?

Só agora me dei conta … que sonho estranho me acordou. Parecia um pesadelo. Uma sensação de queimadura na garganta, descendo até o peito … piorava quando eu tentava me lembrar do sonho.



Pedro estava do lado de fora, recostado à parede. Ele cochilava, e parecia estar segurando algo no colo, mesmo sem ter nada ali. Um pouco de saliva escorria de sua boca entreaberta. De novo, isso... Acordei-o para saber se realmente já queria ir embora. "Calma", ele disse, "estou quase chegando ao final... me espere um pouco mais". Dormira de novo.


Era estranha essa reação dele; mas, para mim, estava ótimo. Ele devia estar exausto – eu sempre tento tirá-lo do mundo antissocial dele, a maioria das vezes sem sucesso … E, sabe-se lá que tipo de sonho ele estava tendo, mas estava se divertindo. Eu iria deixá-lo ali mais e iria comemorar mais um pouco até irmos embora juntos. Fiz um cafuné nele antes de voltar para dentro.


Foi então que eu ouvi. A mesma música. Eu conferi se ainda estava com os fones de ouvido - não estavam lá. Os acordes, tons, subtons, era realmente uma composição que ele havia feito pra mim, há algum tempo, mas estava inacabada. Ela tocava em loop, sempre a mesma parte, sempre...

Voltei meus olhos na direção de Pedro - ele estava na mesma posição, mas tremia - seus dedos moviam-se no ar... Tirei minha mão subitamente de seus cabelos, agora molhados, e uma nota aguda me atordoara. Ele me olhava.


Os olhos não piscavam. Pareciam sonolentos, mas havia algo vívido dentro deles, algo que me nunca percebi e que agora me agoniava. Arfava, sem entender esse calafrio, vindo de alguém que sempre me estendia a mão. Como se tivesse lido meu pensamento, ele esticou o braço em minha direção, e seus lábios se moviam, sem dizer nada. Dei um passo para trás e uma nova nota foi tocada. "Dance"... sibilou-me. Levantou-se e deu dois passos para a frente. "Dance, minha vida, dance", disse.


Num impulso, como uma cigana, ofereci meu pé e minha perna ao ar, e no ar rodopiei como uma louca. Havia uma carga elétrica na minha dança, um luar brilhava através de minha, mais que isso, eu era uma estrela ardendo no espaço. Sentia que, naquela dança tão espontânea e automática, eu criava mundos, separava águas, gerava identidades, movia universos. Era a dança da vida, uma espiral sem limites que tomava conta de mim e me fazia de seu joguete.

Ao mesmo tempo, a espiral era meu brinquedo, eu a fazia pulsar e rodopiar a meu bel-prazer. Meu corpo dançava no ritmo daquela música, loop após loop, e a cada vez, a música assumia um ritmo mais forte e rápido. A tensão aumentava, e Pedro contemplava a dança como um enlevado espectador. Logo a tensão foi atingindo seu limite, uma sensação como a de um orgasmo foi tomando conta de mim, e uma série de imagens percorriam minha mente, acompanhando o ritmo de meus movimentos: uma sequência de assassinatos, executados por uma mão invisível, no bar onde eu antes estava prestes a entrar.

Meu corpo estava encharcado de suor. Não havia ninguém na rua a nos assistir, só ele, Pedro, era como se o mundo fosse só nosso. E naquele momento, era a mais pura verdade. Os loops continuaram e em minha mente eu revivia todas aquelas mortes, que me chocavam mais e mais, até que num dado ponto, eu estava insensível a elas e as enxergava como parte do ciclo, da dança da vida. A boca de Pedro foi se abrindo, devagar, e dela eu enxergava saírem os sons da música repetitiva, trocando os sentidos numa insanidade mesmérica. Ao violino se juntaram corais e flautas, tocando numa toada louca, quebrando finalmente o loop que me castigava, e eu enxergava figuras indefiníveis girando ao redor de Pedro, eram eles a fonte daquele acompanhamento que eu tinha como ganidos e gritos de hiena tomando a forma de saxofones, flautins, flautas-doce, oboés … e em alguns instantes, nenhum instrumento fazia mais sentido, era só o som … os olhos do meu companheiro se enchiam de luz e trevas, ele me fitou cheio de amor, doçura e sede, e gritou, enchendo meus tímpanos de dor e prazer:


“Iä! Iä! Shub-Niggurath!”


A música continuava, partes jamais tocadas se desdobravam e exibiam, e a música de Pedro se revela infinita como o próprio universo, como a própria linha do tempo. Eu me sentia infinita, dançava e sentia meu corpo crescer, dar a luz criaturas e vórtices, sombras e corpúsculos frenéticos, multiplicar-me, eu era o princípio da vida. E me veio o impulso de também gritar, respondendo àquele que sempre fora meu amado (eu tinha agora certeza!):


“Iä! Iä! Azathoth!”

A cabeça e todo o corpo de Pedro se contraíram, como se ele fosse o centro de tudo, a realidade ao nosso redor era sugada para ele … nossos olhos se encontraram e eu sentia que a ele era devolvida uma vida muito menor que a que ele demonstrava agora, sendo o senhor de toda a criação. Aquele instante de pulsar durou uma eternidade e um átimo, e eu me identifiquei com ele a tal ponto, e dançava numa tal velocidade e rapidez, que perdi a consciência e os sentidos, e percebi que estava correndo pela rua, tentando fugir de mim mesmo. Os meus pés logo se cansaram, eu parei para recuperar o fôlego …

Que é que eu estava fazendo? Porque deixava Letícia para trás? Nada daquilo era necessário. De repente, naquela corrida até minha casa, eu, Pedro, percebia o quanto ela era importante para mim. Era como se um novo universo de percepções, de conceitos ocultos, houvesse se descortinado diante de mim. Voltei minha cabeça para o bar onde Letícia ainda devia estar, e andei confiante para lá.

A sensação de andar era como se eu estivesse andando numa realidade totalmente nova, recém-criada. Tudo era igual, e ao mesmo tempo tão diferente. Eu era pequeno, era apenas Pedro, e ao mesmo tempo era senhor de tudo, senhor de mim mesmo, graças a um amor inexplicável, insondável.

Entrando no bar, ouvi uma música familiar ser tocada, o que era aquilo? Alguns dos frequentadores mais bêbados gritavam em uníssono: “Iä! Iä! Yog-Sothoth!” e aquele gesto me causou um calafrio horrendo e ao mesmo tempo prazeroso.


E no centro do salão, lá estava Letícia, ajoelhada no chão, como se estivesse prostrada ante mim, como se estivesse à minha espera ali, desde sempre, e estendia um violino em suas mãos. Sorria.


Finalmente, a nossa sinfonia iria ter um começo ... ela iria ter um final.


Lá fora, o universo despedaçado e refeito, mundos paralelos entrando em colapso, realidades chocando-se numa dança cuidadosamente executada por uma música doce e violenta, sensual e arredia, indefinível e essencial, que partia de um violino no centro do cosmos. E logo, uma canção se levantou em acompanhamento, uma voz feminina ressoou pelas estrelas, a luz e as trevas foram confundidas, a vida ferveu em caldos primordiais nos planetas mais distantes, o homem despertou sua consciência em milhares de jardins do Éden, espalhados por todos os cantos do espaço … e se espalhou como um câncer, um vírus insidioso e persistente.

Uma força, uma entidade feiticeira, surge como bolhas de separação entre as várias camadas da realidade … ela brilha, reluz num clarão e se esconde nas fissuras do espaço e do tempo. Os bêbados no bar entoam “Yog-Sothoth é a Chave e o Portal”. Um a um, cadáveres perdidos no tempo restante do universo anterior começam a se desintegrar e sumir, desfiados, nunca existiram: um homem musculoso cortado em dois; uma menina enforcada por sua roupa; uma mulher afogada em vômito; um velho de olhos mutilados, plenos de cegueira; um moço sem o tampo do crânio. Suas essências se dissipam e em seu lugar coalesce uma espécie de forma-pensamento … uma transmissão de ideias vindas do mais fundo dos céus … o tulpa dos novos deuses criadores assume seu papel de Voz e Mensageiro, e aguarda.

Pedro termina por fim sua música, enfim liberta de sua mente bloqueada. Respirando fundo, com o violino em mãos, ele olha para sua amada Letícia, que pôs letra espontânea na música que lhe era dedicada. Os dois tinham a impressão de ter sido aplaudidos pelos bêbados do bar, mas ao que parece, não havia mais ninguém ali, só o dono do bar preparando-se para fechar o estabelecimento, indiferente a tudo … e mais alguém: um homem negro, careca, agigantado, vestindo terno e gravata pretos, ia discretamente saindo pela porta dos fundos. Letícia sentiu-se agitada por aquela presença que se retirava, e gritou para ele, quase sem motivo: “Ei! E o senhor, quem é?”



A figura voltou-se para eles, sorrindo enigmático como uma esfinge, e o estranho era que, embora sua pele fosse negra de ébano, não tinha feições da raça negra, e sim um nariz aquilino e lábios finos. Ele segurou na mão uma curiosa máscara amarela, riu malicioso e disse, para logo depois sair batendo a porta: “Apenas um ator veterano indo representar uma nova peça, no centro da cidade, crianças … chama-se O Caos Rastejante … de um autor desconhecido … venham me ver quando puderem … E parabéns pelo talento de vocês … aliás, como faz um amigo meu de longa data, Jules Winnfield, posso dizer que o mais apropriado a fazer é agradecer-lhes com uma passagem da Bíblia, que eu memorizei. Isaías 65:17 … POIS EIS QUE EU CRIO NOVOS CÉUS E NOVA TERRA; E NÃO HAVERÁ LEMBRANÇA DAS COISAS PASSADAS, JAMAIS HAVERÁ MEMÓRIA DELAS.”

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MAESTROS DA MORTE por Lady Mizune e Arthur Ferreira Jr.'.
As partes de cada autor são diferenciadas por fontes de letra. A primeira parte foi iniciada por Lady Mizune e a última, por Arthur Ferreira Jr.'.